Sob o sol escaldante no céu, às batidas de milhares de arados no solo, nos campos de algodão e tabaco regados pelo suor dos escravos norte-americanos, podia-se ouvir um clamor, um grito de angústia. Vindo de cada boca negra, e resultado de desumana opressão, um canto triste e sem perspectivas ecoava; canto este que os fazia lembrar de sua mãe África, de sua terra deixada há muitos anos, há muitas milhas de água salgada.
Tal canto, ao longo dos anos, sofreu mudanças e adaptações, gerando um estilo de crucial importância à musicalidade ocidental do séc. XX até os dias atuais: o Blues.
Às margens do rio Mississipi surgiram os primeiros grandes nomes do gênero; logo em seguida, o Blues atingiu Chicago, influenciando, na década de 40, os pioneiros do Rock americano, e sendo, na década de 60, resgatado pelas grandes bandas britânicas, como os Stones e os Beatles.
Entre os principais nomes do estilo, como os veteranos Robert Johnson, Muddy Waters e BB King, está o artista de cujo disco falarei na resenha de hoje: John Lee Hooker. O álbum em questão é “Chill Out”, lançado já na década de 90 – mais precisamente em 1995 – quando o artista já possuía longos anos de carreira e experiência, gozando de enorme respeito por parte dos entusiastas da música negra norte-americana.
Apesar de não tratar-se de um registro antigo, “Chill Out” conserva o verdadeiro espírito do Blues, tendo em cada nota batida em seu violão as cicatrizes e a melancolia características do estilo. Por mais que, na maioria das vezes, as letras não serem pessimistas – fato nada anormal ao estilo que, afinal de contas, não é feito só de amarguras – há predominância de uma sonoridade bastante taciturna e até mesmo monótona, o que, em minha opinião, é um ponto pra lá de positivo.
O disco tem inicio com “Chill Out (Things Gonna Change)”, contando com a guitarra caliente de Santana. A faixa possui uma sonoridade impar no trabalho, com a forte veia latina trazida pelo guitarrista convidado. Os instrumentos de percussão adicionam ainda mais ênfase a esse tempero. Com todo o respeito a Santana e sua importância para a musica em âmbito mundial, esta talvez seja a faixa que menos me agrada em todo o disco, sendo sua faixa mais comercial.
Para mim a diversão começa realmente com a segunda faixa, “Deep Blue Sea” – se é que a faixa possui algo de divertido… Trata-se daquele Bluesão bem a la Hooker, escrita e executada pelo músico. São só John, seu violão de cordas de aço e seu pé, batendo o ritmo, solitário, insistente, no piso do estúdio, proporcionando ao ouvinte um momento bem intimista, como se estivéssemos sentados em um quarto de um casebre em Nova Orleans, observando a chuva pela janela e ouvindo os acordes martelados no violão.
O álbum tem continuidade com “Kiddio” e sua levada gostosa e um tanto mais alegre. A faixa possui bem mais instrumentação que a anterior, contando com um pianinho arisco, executado brilhantemente por Charles Brown; guitarra discreta; um baixo ainda mais discreto; e aquela bateria malandra, ali, como se não quisesse nada com nada.
Outro momento intenso é o medley “Serves Me Right to Suffer/Syndicator”, levando qualquer fã do bom e velho Slow Blues às alturas. A faixa conta com a participação especialíssima de Van Morrison nos vocais e guitarra, demonstrando grande feeling em cada nota executada. O órgão de Booker T. Jones também marca presença, dando à faixa o acabamento merecido.
“One Bourbon, One Scotch, One Beer” trata de um assunto bem decorrente no Blues: a manguaça. Haja fígado! A faixa é um Blues pra cima, bem descontraído – não me chamando muita atenção, pra ser sincero. O ouvinte mais atento perceberá que John Lee, até aquí, não executou dois tipos iguais de Blues, fazendo um passeio por várias variáveis do estilo.
Apartir de agora, a fossa reina soberana no trabalho – ao menos no que diz respeito à musicalidade. “Tupelo”, lembrando a segunda faixa do disco, conta apenas com Hooker, repetindo um riff melancólico em seu violão.
O mesmo clima de profunda melancolia está presente em “Woman On My Mind”. O ouvinte não familiarizado com essa sonoridade, ou se a musica monótona não for mesmo do gosto do freguês, achará tudo isso um porre, abrindo o aparelho de som e enterrando o disco em uma caixa a sete palmos abaixo da terra. Bom, sempre há de haver um camarada que, assim como eu, fechará os olhos e sentirá toda a emoção transmitida pelo músico.
“Annie Mae”, ainda de um fel absoluto, possui acompanhamento de uma bateria lenta, piano expressivo e os solussos rápidos e grosseiros da guitarra característica de John Lee Hooker. Mais uma vez Charlie Brown dá um show à parte no piano. É interessante observar a constante repetição de palavras de John, uma de suas marcas registradas – especialmente quando se trata da palavra “you”.
A próxima faixa, “Too Young”, é um tanto estranha e bastante sentida. Aquí o disco chega ao auge da monotonia, sendo um pouco parada demais até mesmo para mim.
“Talkin’ The Blues” e “If You Never Been in Love” apresentam a mesma forma de Blues, com John se lamentando ao violão.
Confesso que após três músicas seguidas com esse rítmo de lesma o álbum fica um pouco cansativo, mas a última faixa vem salvar o dia: “We’ll Meet Again”, um Slow Blues muito gostoso, fechando o disco com chave de ouro. Bruce Kaphan faz um belo trabalho guitarrístico, diferenciando-se totalmente do estilo de Hooker.
Para a maioria dos ouvintes, o álbum pode ser adjetivado com uma só palavra: chato. Mas para quem quer passar a madrugada sozinho, deitado no quarto, feeling the Blues ao som da chuva, a satisfação é garantida. Bom, não sei se garantida, mas pra mim funciona bem…