sábado, 14 de março de 2009

Metamorfosi - "Inferno"


“Quando eu me encontrava na metade do caminho de nossa vida, me vi perdido em uma selva escura, e a minha vida não mais seguia o caminho certo. Ah, como é difícil descrevê-la! Aquela selva era tão selvagem, cruel, amarga, que a sua simples lembrança me traz de volta o medo. Creio que nem mesmo a morte poderia ser tão terrível. Mas, para que eu possa falar do bem que dali resultou, terei antes que falar de outras coisas, que do bem, passam longe.” *

O texto, parte da obra prima de Dante Alighieri “A Divina Comédia”, serve de perfeita introdução ao disco que tenho o prazer de resenhar hoje: “Inferno”, da banda siciliana Metamorfosi, lançado em 1973 pela gravadora Vedette. Baseado na primeira parte da obra do autor, o álbum é uma verdadeira viagem ao centro da terra – onde, segundo a ficção de Dante, encontra-se Dite, o diabo, mastigando Judas Iscariote, Bruto e Cássio – provocando no ouvinte um calafrio a cada passo dado através das diversas alas em que sofrem, eternamente, as almas pecadoras.

Cada composição do álbum dedica-se a uma punição para um pecado específico citado por Dante em seu livro, criando atmosferas soturnas e uma experiência sonora pesada. O trabalho de Enrico Olivieri com os teclados é algo simplesmente incrível, e a obra soa absolutamente italiana, com arranjos sobressalentes e momentos fortes, sempre pontuados pela voz poderosa de Davide "Jimmy" Spitaleri, fazendo com que “Inferno” soe como uma ópera trágica e macabra. “Deixai toda esperança, ó vós que entrais!” *

O álbum tem início a fabulosa “Introduzione / Selva Oscura”, uma das melhores composições italianas – dentro do Rock Progressivo – já ouvidas pelos fãs do estilo. A fúnebre introdução, feita no órgão e no cravo, apresenta pela primeira vez a igualmente fúnebre voz de Spitaleri, passando posteriormente a um riff encabeçado pelos sintetizadores de Enrico. A faixa, riquíssima em timbres, texturas e andamentos variados, é de explodir a cabeça, possuindo uma energia fora do comum.

O disco prossegue com a lúgubre “Porta Dell’Inferno”, emendando-se a “Caronte”, a entidade responsável pela travessia das almas pelo rio Aqueronte. A faixa emenda-se, repentinamente, a “Spacciatore di Droga” (traficante de drogas), em que a banda toma a liberdade de adicionar um novo pecado e sua devida punição à adaptação musical do livro. Na mesma faixa estão contidas também “Terremoto” e “Limbo”, proporcionando grande dinamismo na obra, com variação entre trechos melancólicos e explosões viscerais.

Romântica – e até um pouco melosa –, “Lussuriosi” vem condenar os praticantes da luxúria, jogando-os em um eterno redemoinho. A faixa, apesar de não agradar muito sonoramente, apresenta coerência com sua letra. Predominam tons agudos quanto a instrumentação – pois a voz de Spitaleri continua grave e severa.

Um momento curioso na obra é “Avari” (avarentos), começando com um órgão sóbrio, em que se canta uma melodia triste e, depois, explode em um poderoso riff de sintetizador, voltando à passagem de órgão e, novamente, ao sintetizador, transformando-se em uma animada – e breve – musica meio, digamos, “videogamística”!

“Violenti” começa com o mesmo acorde de órgão, a que é acrescida uma belíssima melodia de sintetizador, dando entrada aos vocais melancólicos. Logo após esse trecho mais calmo a faixa torna-se mais enérgica. De súbito, tudo é interrompido para dar espaço à parte mais interessante da faixa, mais escura e fria, desenvolvendo-se em uma ótima sequência de acordes em que o sintetizador monstruoso de Olivieri ganha vida novamente.

“Malebolge”, o círculo da fraude, é retratado musicalmente de maneira agitada e atormentada. A faixa emenda-se a “Sfrutattori”, basicamente instrumental, dando vazão aos vôos tecladísticos de Enrico. Uma parte mais calma e bastante dramática é inserida no meio da faixa, e mais uma vez há uma sessão da tecladeira impiedosa tão presente no álbum. Enrico executa um fantástico e frenético solo de piano, um dos melhores trechos de todo o disco. A faixa transforma-se em um Jazz constituído pela bateria bem trabalhada de Gianluca Herygers e as melodias do baixo de Roberto Turbitosi. Após essa parte, o bom e velho Progressivo volta com tudo, e o piano fominha de Olivieri toma conta da faixa novamente.

Em “Razzisti” a banda insere mais uma vez um pecado novo ao inferno: o racismo. Ótima faixa, bem pesada, dando um toque Hard muito bem vindo à obra. Um dos momentos mais interessantes é a inserção do hino nacional norte americano – de maneira destorcida – na faixa, numa clara denúncia à postura imperialista e opressora do país. A melodia é executada de maneira obscura, preparando o terreno para “Lucifero (Politicanti)”. Aqui encontramos uma característica muito marcante no livro de Dante: a denúncia política.

“Conclusione” fecha o trabalho tristemente, com todo o peso das cenas terríveis vistas na excursão pelos vários círculos do inferno. Na obra literária, o poeta Virgílio, o guia de Dante pela jornada, o conduz também ao purgatório e, finalmente, ao paraíso, fato não ignorado pela banda que, décadas depois, em 2004, lançou o álbum “Paradiso” que, em completo contraste com a obra aqui resenhada, é repleta de melodias doces e momentos alegres. Mas isso é assunto para outra resenha.

Eu não poderia deixar de citar a sensacional capa do álbum, um brilhante retrato da depressão. Predominantemente azul, a capa retrata almas sem rosto sofrendo, absolutamente solitárias e desamparadas, na vastidão fria de sua morada eterna. Sem dúvidas não é uma pintura que você quereria em sua sala de estar...



* Adaptação em prosa para a língua portuguesa feita por Helder da Rocha, disponível no site http://stelle.com.br

sexta-feira, 6 de março de 2009

A Barca do Sol - "Pirata"


Hoje chega ao fim esse grandioso cruzeiro por toda a discografia d’A Barca do Sol, passando por mares agitados, calmarias, e paisagens intangíveis, vislumbrados apenas por meio de boa musica. O derradeiro álbum da banda, “Pirata”, é também o menos reconhecido de todos, não possuindo nem sequer uma versão em CD. Trata-se, porém, de um trabalho que faz jus ao restante da obra do grupo, cheio de momentos inspiradíssimos – como é de praxe quando o assunto é A Barca.

Já sem o violoncelo de Morelembaum, a banda apresenta uma razoável mudança de sonoridade no disco, talvez esse o fator responsável pela menor atenção dada a ele pelos admiradores do conjunto. Os ritmos brasileiros possuem maior evidência no álbum e, ao mesmo tempo, unem-se, em algumas composições, a estruturas e formas características do Progressivo, produzindo um resultado pra lá de satisfatório.

Exemplo dessa valorização à musica genuinamente nossa, “Vô Mimbora Pro Sertão” abre o disco de maneira regionalista, com vozes harmonizadas, letra simples, e percussão, com direito até a um solo de berimbau ao final da faixa.

O mesmo berimbau dá início a “Tereza Boca do Rio”, uma espécie de baião bem sóbrio, ao estilo d’A Barca. A bela faixa conta com simples e ótimos arranjos de voz, flauta, baixo, violões e percussão – além do já citado berimbau. Um momento bastante aconchegante e suave.

Emendada à canção anterior, “Mercado das Flores” mostra-se uma composição ainda melhor, repleta de variações rítmicas e instrumentais, ainda evidenciando a sonoridade brazuca, contendo, por exemplo, pitadas de samba – com direito à percussão caprichada – e musica mineira, numa amálgama muito coesa e de bom gosto. Destaque para os maravilhosos bandolins, que realmente fazem a diferença na faixa.

“Cavalo Marinho”, apesar de já ter sido lançada em “Corra o Risco”, supera tal versão devido à presença de duas vozes, em contraste com o vocal solitário de Olívia na primeira gravação. Os arranjos de violões são muito bem trabalhados, contendo um belo solo entre as partes cantadas. Outro motivo por que a versão de “Pirata” supera à de “Corra o Risco” é a menor repetição da letra.

A veia Prog do disco aparece pela primeira vez em “Jando”, mesclando arranjos abrasileirados a um Rock Progressivo extremamente competente e trabalhado. Os teclados são muito bem executados, assim como a bateria inquieta e quebrada. A banda foi muito feliz nessa mistura, criando, realmente, o “Prog à brasileira”, ao invés de simplesmente intercalar trechos de musica brasileira pura e, posteriormente, arranjos progressivos cheirando à Inglaterra.

Na seqüência, a emocionante “Jardim de Infância”, dispensando maiores detalhes devido a sua presença no já comentado álbum de estréia de Byington – apesar de aqui a canção parecer estar ainda mais deslumbrante.

Outro momento agradabilíssimo é “Desencontro” e sua bela melodia. Os arranjos discretos e requintados dão sabor emepebístico e jazzístico à obra.

A maravilhosa “Estrêla” merece grande destaque. Sua inspiradíssima melancolia agrada em cada mudança de acorde. Uma canção a ser bebida aos poucos, dotada daquela atmosfera intimista bem familiar aos fãs d’A Barca. A canção possui alguma coisa de Jazz, e um piano com dose extra de feeling. Muito bom!

Em contraste absoluto com qualquer outra composição da banda, “Manoel” já vem esculachando de cara, com seu sambinha tão malandro quanto o protagonista da canção. Muito divertida e descontraída, a faixa, apesar de ser um samba, contém uma bateria roqueira e solo de guitarra. O contrabaixo acústico também marca presença, assim como em diversas outras faixas do álbum.

“Rio Preto”, a exemplo de “Jando”, ostenta arranjos característicos do Progressivo mesclados à musica brasileira, sendo, porém, um pouco menos agressiva.

A instrumental “Canção Pra Ela” finaliza o disco de maneira comportada, não possuindo nenhuma característica muito marcante. Trata-se, contudo, de uma bela faixa.

E assim termina nossa saga musical, guiada por esse grupo de grande importância para a música nacional e de onde saíram renomados instrumentistas e compositores. Vale a pena comentar também a arte gráfica do disco, cujo autor é completamente desconhecido por mim. Trata-se, porém, de uma ilustração muito interessante, feita toda em escala de cinza, contendo um navio pirata, é claro, e diversos outros elementos condizentes à temática do álbum.