segunda-feira, 31 de agosto de 2009

Gentle Giant - "Octopus"




Certa vez Tom Jobim, um dos maiores nomes da MPB, se perguntou se o Rock evoluiria para o quarto acorde. Mal sabia ele que sua requintada Bossa Nova seria superada infinitamente em complexidade e riqueza de arranjos e timbres pelo infame estilo que, até então, apenas engatinhava. O Rock, filho maldito do Blues e do Country, mostrar-se-ia um adúltero de primeira, flertando com vários outros estilos e texturas alguns anos mais tarde, como o Jazz, o Bangra, o Folk, o Samba – alguém aí se lembra do Tropicalismo? – e a Música Erudita.

É nesse contexto, de casamento com os mais diversos estilos musicais, que surge o Rock Progressivo, tão martelado por mim nesse blog, e entre os maiores e mais influentes nomes de tal movimento está o genial grupo britânico Gentle Giant. Seu estilo único, abundante em harmonias riquíssimas e melodias pouco convencionais – para não dizer completamente absurdas, em alguns casos –, mesclou com brilhantismo o Rock e a Música Erudita, contendo, inclusive, boas doses de música medieval e renascentista.

O disco escolhido para a resenha de hoje é o quarto trabalho da banda, o reverenciado “Octopus”, de 1973. O Gentle Giant aqui atinge, talvez, seu máximo amadurecimento, estando completamente à vontade no terreno do “Baroque n’ Roll”. Afaste sua irmã adolescente desse disco, e nunca, sob hipótese alguma, mostre-o à sua querida vovó. Os efeitos podem ser extremamente drásticos. A apreciação desse álbum só será possível a mentes extremamente abertas, interessadas por manifestações artísticas ousadas e combinações perigosas. Ser louco também ajuda.

Sem mais delongas, vamos à análise da primeira faixa, “The Advent of Panurge”, um belo exemplo da mistura de influências eruditas de diversas épocas com uma sonoridade mais contemporânea, até mesmo funkeada em alguns trechos. A faixa possui um belo trabalho de polifonia vocal em seu início e em passagens diversas, sempre esbanjando requinte no que tange a instrumentação. É interessante notar os diferentes timbres de sintetizador – jamais ouvidos por mim em nenhuma outra música. O piano também está excelente.

“Raconteur Troubadour”, a mais atmosférica do álbum é, em minha opinião, a decodificação musical de sua capa, totalmente marinha. Em minhas divagações, sempre me ocorre a imagem de um capitão, no interior de seu navio, fazendo anotações em seu mapa – ou diário de bordo – com a lamparina escorregando em cima da mesa, com o balanço do barco; ou então imagino um polvo, lentamente movendo seus tentáculos nas profundezas oceânicas. Onirismo aparte, a faixa apresenta grande variação de timbres e atmosferas, nos transportando do alto-mar para um baile de gala, depois para um circo maluco e, finalmente, de volta para o navio. É, não teve jeito, essa música meche mesmo com minha imaginação...

A mais, digamos, “Rock ‘n’ Roll” do álbum, é a terceira faixa, “A Cry For Everyone”, possuindo um riff mais pesado do que de costume dentro da sonoridade da banda, mostrando sua diversidade e riqueza musical. A faixa, como não poderia deixar de ser, apresenta diversas variações rítmicas e, apesar de não constar entre as mais belas obras do grupo, possui arranjos bem trabalhados e inusitados.

Agora, leitor, prepare-se para uma obra-prima: “Knots”, um dos mais complexos trabalhos de polifonia vocal já ouvidos em todo a música pop. A obra pegará de surpresa o ouvinte menos experiente, e soará a ele como uma incompreensível maçaroca sonora. Aos ouvidos mais maduros, porém, será um sólido alimento, abundante e riquíssimo em arranjos e texturas, além de super original. É de dar nó na cabeça.

A faixa seguinte, “The Boys in the Band”, está entre as favoritas da maior parte dos fãs da banda. O Gentle Giant mostra que realmente não está de brincadeira, esbanjando talento e virtuosismo nos 4:32 minutos de duração da música, explorando os mais variados timbres de seu arsenal em uma massa sonora lancinante. Minha única crítica negativa à faixa é a excessiva repetição de temas que, apesar de excelentes, tornam-se um pouco cansativos. De qualquer forma, eu desafio qualquer banda a executar “The Boys in the Band” sem suar frio.

Depois de todo o exagero sonoro da última faixa, a banda alivia um pouco com “Dog’s Life”, predominantemente acústica e não tão inovadora, apesar de ainda apresentar arranjos e timbres bastante inusitados. Mesmo sem receber grande destaque, trata-se de uma bela faixa.

Dotada de singeleza e doçura pouco comum na discografia do gigante, “Think of Me With Kindness” abunda, ainda, em sons acústicos e baseia-se, principalmente em sua melodia principal, sem grandes voos instrumentais. Ainda que mais poderosa e classuda que a faixa anterior, “Think of Me With Kindness” mostra-se também comportada em relação ao restante do álbum.

O disco chega ao fim com a esquisitíssima melodia de “River” – completamente esquizofrênica – que retoma o clima aquático evocado pela segunda faixa. No meio da música, Gary Green ataca com um ótimo solo de guitarra, sustentado por acordes embalados e descontraídos executados por instrumentos tradicionais de Rock. A faixa possui, portanto, passagens mais inventivas e outras mais convencionais e funkeadas – que, sinceramente, chegam a agradar mais, nesse caso específico.

Considerações finais: “Octopus” é considerado um dos grandes álbuns do Rock Progressivo setentista, constando de qualquer lista dos melhores e mais importantes álbuns do gênero. Encontramos aqui uma banda madura que, por mais que escorregue em alguns pontos, consegue firmar-se definitivamente como uma gigante do estilo, ao lado de grupos consagrados como Yes, Jethro Tull e ELP – por mais que não tenham obtido o sucesso comercial das mesmas.

O álbum foi lançado com duas capas distintas: uma feita pelo lendário padrinho do Prog Roger Dean e outra produzida para o mercado norte-americano. Ambas são belíssimas obras, estampando – como não poderia deixar de ser – imagens de um polvo, representando muitíssimo bem a musicalidade do disco – principalmente a versão americana, a primeira das duas mostradas acima.

Então, caros leitores, a próxima vez que encontrarem um ensoberbecido boêmio, entusiasta dos grandes e renomados mestres da bossa, façam o favor de tacarem-lhe um Gentle Giant na cara para mostrá-lo que o Rock, há muito, não se resume a jaquetas de couro e um balançar de pélvis.

domingo, 17 de maio de 2009

Engenheiros do Hawaii – “¡Tchau Radar!”


Por Haig Berberian

Às vezes a gente pensa que determinados álbuns – daqueles que levaríamos junto se fôssemos a exílio para o Uzbequistão ou Marte – são igualmente considerados importantes para todos os outros fãs da banda que os produziu. Partindo dessa premissa, eu não conseguia entender a razão pela qual “¡Tchau Radar!”, um dos discos mais importantes da minha vida, está a tantos anos fora de catálogo, sendo achado – e a preços absurdos – apenas em sites como o Mercado Livre.

Conversando com uns amigos meus, também fãs dos Engenheiros do Hawaii, a mais controversa banda gaúcha, descobri algo que mudou meu modo de ver o mundo: eles não davam a mínima pro “¡Tchau Radar!”! Relutei em aceitar, bati o pé, impliquei, mas tudo que ouvi foram respostas do tipo “ele não está nem entre os meus 10 favoritos dos Engenheiros”. Será, oh céus, que meu disquinho de estimação não passa de um coadjuvante na discografia hawaiiana?

Bem, é claro que minha opinião a respeito do 11° trabalho de carreira de Humberto e seus capangas é completamente passional. Afinal, esse jovem redator que vos escreve teve tal álbum como porta de entrada ao universo musical dos Engenheiros, há 10 anos, quando o CD foi lançado. Lembro-me, ainda hoje, de assistir aos primeiros segundos do clipe de “Eu Que Não Amo Você” no Top 10 da MTV, e me perguntar “o que diabos seriam esses Engenheiros do Hawaii??”. Essa pergunta precedeu uma explosão mental tão expressiva que, até hoje, depois de ter passeado por vários estilos e tendências roqueiras, “¡Tchau Radar!” ainda configura em minha lista de álbuns mais preciosos.

Mas a obra não é feita somente de nostalgia. Esse é o trabalho de amadurecimento da formação Humberto, Lúcio, Luciano e Adal, grupo que perduraria somente por mais um registro, o matador “1000 Destinos Ao Vivo”, lançado no ano seguinte. Aliás, poucas vezes a banda soou tão poderosa no palco, provando a indubitável qualidade do grupo. Infelizmente o General Gessinger não agüenta ninguém ao seu lado por muito tempo – ou seria o contrário? – e no ano seguinte o exército de um homem só já contava com outra tropa.

“¡Tchau Radar!” já começa com uma porrada, “Eu Que Não Amo Você”, o carro chefe do disco. A tecladeira marcante, a guitarra destorcida e a batera agressiva dão peso à composição, um tanto fechada e escura, assim como a maioria das demais canções do trabalho. Destaque para o solo de guitarra, simples e preciso, dando à faixa exatamente o que ela precisava.

O disco segue com uma brilhante adaptação de “It’s All Over Now Baby Blue”, de Bob Dylan, recriada por Péricles Cavalcante e Caetano Veloso sob o título de "Negro Amor". Humerto ataca com sua gaita, na época não tão utilizada em canções da banda quanto na fase mais recente. A faixa, uma balada semi-acústica, foi extremamente bem produzida e esbanja bom gosto, agradando a gregos e troianos.

A estradeira “Concreto e asfalto”, direta e indomável, faz com que o ouvinte transporte-se imediatamente a uma BR qualquer. Letra e melodia dão show, e a instrumentação mostra-se extremamente competente, com timbragem impecável. A faixa traz consigo um ar nostálgico irresistível, e apresenta coesão perfeita com o restante do álbum.

A melancolia que permeia todo o disco encontra um de seus mais belos momentos em “Até Mais”. Poucas vezes Humberto Gessinger falara de amor tão abertamente, tão assumidamente, tão sentimentalmente até essa canção. Audição agradabilíssima.

“Nada Fácil” e “O Olho do Furacão”, as duas faixas seguintes, abordam temas mais pesados, como suicídio, depressão e desamparo, tendo reflexo em sua musicalidade obscura e febril. Ambas as faixas possuem letras fantásticas, em que HG soube dosar sua compulsão metafórica.

Retomando o tema de “Concreto e Asfalto”, a banda nos traz “Seguir Viagem”, apresentando, a exemplo dessa última, uma ótima orquestração e produção esmerada. Mais um grande momento do disco, lírico e poderoso ao mesmo tempo.

A próxima canção, “1000 Destinos”, outra balada muito elegante, apresenta ótimas letra e melodia.

Quebrando totalmente o clima e diferenciando-se substancialmente de todas as canções anteriores, a descontraída “Na Real” questiona forças transcendentais, misturando um tema de filme de terror e musicalidade western. Humberto diz ter composto a letra sob uma perspectiva literal, mas aprendeu a considerá-la como uma canção de amor, devido ao fato de vários fãs terem a considerado como tal.

O álbum segue com a beleza rara de “3x4”, uma belíssima homenagem de Gessinger à sua esposa. Diferentemente da roupagem “bobo-alegre” dada à canção no show acústico da banda, aqui “3x4” é revelada com sua real essência: vulnerável e sublime. A gaita e o violão envolvem a voz de maneira perfeita, gerando um momento intimista e sincero.

“Melhor Assim”, outro momento um pouco mais descontraído do trabalho, é um conselho de amigo para amigo. A faixa possui bom trabalho de guitarra e teclado, dispensando maiores comentários.

Eu não consigo pensar em uma conclusão melhor para um álbum de tamanha expressão que a releitura de “Cruzada”, composição brilhante de Tavinho Moura e Márcio Borges. O arranjo de cordas desarma qualquer ouvinte, banhando a canção de maneira tocante. É claro que há o dedo de um grande músico por trás uma tão magistral roupagem: nosso velho conhecido Jacques Morelembaum, para quem já rasguei a seda diversas vezes aqui no blog.

“¡Tchau Radar!”, em minha concepção, foi o último grande álbum de estúdio dos Engenheiros do Hawaii, antes de a banda entrar na veia mais modernosa dos álbuns-gerúndio “Surfando Karmas e DNA” e “Dançando no Campo Minado” e, posteriormente, afundar de vez no patty-pop normalzinho dos discos acústicos. Agora resta esperar e rezar para que Humberto apareça novamente com um trabalho de tão poucas vogais e tanta qualidade quanto esse.

sábado, 14 de março de 2009

Metamorfosi - "Inferno"


“Quando eu me encontrava na metade do caminho de nossa vida, me vi perdido em uma selva escura, e a minha vida não mais seguia o caminho certo. Ah, como é difícil descrevê-la! Aquela selva era tão selvagem, cruel, amarga, que a sua simples lembrança me traz de volta o medo. Creio que nem mesmo a morte poderia ser tão terrível. Mas, para que eu possa falar do bem que dali resultou, terei antes que falar de outras coisas, que do bem, passam longe.” *

O texto, parte da obra prima de Dante Alighieri “A Divina Comédia”, serve de perfeita introdução ao disco que tenho o prazer de resenhar hoje: “Inferno”, da banda siciliana Metamorfosi, lançado em 1973 pela gravadora Vedette. Baseado na primeira parte da obra do autor, o álbum é uma verdadeira viagem ao centro da terra – onde, segundo a ficção de Dante, encontra-se Dite, o diabo, mastigando Judas Iscariote, Bruto e Cássio – provocando no ouvinte um calafrio a cada passo dado através das diversas alas em que sofrem, eternamente, as almas pecadoras.

Cada composição do álbum dedica-se a uma punição para um pecado específico citado por Dante em seu livro, criando atmosferas soturnas e uma experiência sonora pesada. O trabalho de Enrico Olivieri com os teclados é algo simplesmente incrível, e a obra soa absolutamente italiana, com arranjos sobressalentes e momentos fortes, sempre pontuados pela voz poderosa de Davide "Jimmy" Spitaleri, fazendo com que “Inferno” soe como uma ópera trágica e macabra. “Deixai toda esperança, ó vós que entrais!” *

O álbum tem início a fabulosa “Introduzione / Selva Oscura”, uma das melhores composições italianas – dentro do Rock Progressivo – já ouvidas pelos fãs do estilo. A fúnebre introdução, feita no órgão e no cravo, apresenta pela primeira vez a igualmente fúnebre voz de Spitaleri, passando posteriormente a um riff encabeçado pelos sintetizadores de Enrico. A faixa, riquíssima em timbres, texturas e andamentos variados, é de explodir a cabeça, possuindo uma energia fora do comum.

O disco prossegue com a lúgubre “Porta Dell’Inferno”, emendando-se a “Caronte”, a entidade responsável pela travessia das almas pelo rio Aqueronte. A faixa emenda-se, repentinamente, a “Spacciatore di Droga” (traficante de drogas), em que a banda toma a liberdade de adicionar um novo pecado e sua devida punição à adaptação musical do livro. Na mesma faixa estão contidas também “Terremoto” e “Limbo”, proporcionando grande dinamismo na obra, com variação entre trechos melancólicos e explosões viscerais.

Romântica – e até um pouco melosa –, “Lussuriosi” vem condenar os praticantes da luxúria, jogando-os em um eterno redemoinho. A faixa, apesar de não agradar muito sonoramente, apresenta coerência com sua letra. Predominam tons agudos quanto a instrumentação – pois a voz de Spitaleri continua grave e severa.

Um momento curioso na obra é “Avari” (avarentos), começando com um órgão sóbrio, em que se canta uma melodia triste e, depois, explode em um poderoso riff de sintetizador, voltando à passagem de órgão e, novamente, ao sintetizador, transformando-se em uma animada – e breve – musica meio, digamos, “videogamística”!

“Violenti” começa com o mesmo acorde de órgão, a que é acrescida uma belíssima melodia de sintetizador, dando entrada aos vocais melancólicos. Logo após esse trecho mais calmo a faixa torna-se mais enérgica. De súbito, tudo é interrompido para dar espaço à parte mais interessante da faixa, mais escura e fria, desenvolvendo-se em uma ótima sequência de acordes em que o sintetizador monstruoso de Olivieri ganha vida novamente.

“Malebolge”, o círculo da fraude, é retratado musicalmente de maneira agitada e atormentada. A faixa emenda-se a “Sfrutattori”, basicamente instrumental, dando vazão aos vôos tecladísticos de Enrico. Uma parte mais calma e bastante dramática é inserida no meio da faixa, e mais uma vez há uma sessão da tecladeira impiedosa tão presente no álbum. Enrico executa um fantástico e frenético solo de piano, um dos melhores trechos de todo o disco. A faixa transforma-se em um Jazz constituído pela bateria bem trabalhada de Gianluca Herygers e as melodias do baixo de Roberto Turbitosi. Após essa parte, o bom e velho Progressivo volta com tudo, e o piano fominha de Olivieri toma conta da faixa novamente.

Em “Razzisti” a banda insere mais uma vez um pecado novo ao inferno: o racismo. Ótima faixa, bem pesada, dando um toque Hard muito bem vindo à obra. Um dos momentos mais interessantes é a inserção do hino nacional norte americano – de maneira destorcida – na faixa, numa clara denúncia à postura imperialista e opressora do país. A melodia é executada de maneira obscura, preparando o terreno para “Lucifero (Politicanti)”. Aqui encontramos uma característica muito marcante no livro de Dante: a denúncia política.

“Conclusione” fecha o trabalho tristemente, com todo o peso das cenas terríveis vistas na excursão pelos vários círculos do inferno. Na obra literária, o poeta Virgílio, o guia de Dante pela jornada, o conduz também ao purgatório e, finalmente, ao paraíso, fato não ignorado pela banda que, décadas depois, em 2004, lançou o álbum “Paradiso” que, em completo contraste com a obra aqui resenhada, é repleta de melodias doces e momentos alegres. Mas isso é assunto para outra resenha.

Eu não poderia deixar de citar a sensacional capa do álbum, um brilhante retrato da depressão. Predominantemente azul, a capa retrata almas sem rosto sofrendo, absolutamente solitárias e desamparadas, na vastidão fria de sua morada eterna. Sem dúvidas não é uma pintura que você quereria em sua sala de estar...



* Adaptação em prosa para a língua portuguesa feita por Helder da Rocha, disponível no site http://stelle.com.br

sexta-feira, 6 de março de 2009

A Barca do Sol - "Pirata"


Hoje chega ao fim esse grandioso cruzeiro por toda a discografia d’A Barca do Sol, passando por mares agitados, calmarias, e paisagens intangíveis, vislumbrados apenas por meio de boa musica. O derradeiro álbum da banda, “Pirata”, é também o menos reconhecido de todos, não possuindo nem sequer uma versão em CD. Trata-se, porém, de um trabalho que faz jus ao restante da obra do grupo, cheio de momentos inspiradíssimos – como é de praxe quando o assunto é A Barca.

Já sem o violoncelo de Morelembaum, a banda apresenta uma razoável mudança de sonoridade no disco, talvez esse o fator responsável pela menor atenção dada a ele pelos admiradores do conjunto. Os ritmos brasileiros possuem maior evidência no álbum e, ao mesmo tempo, unem-se, em algumas composições, a estruturas e formas características do Progressivo, produzindo um resultado pra lá de satisfatório.

Exemplo dessa valorização à musica genuinamente nossa, “Vô Mimbora Pro Sertão” abre o disco de maneira regionalista, com vozes harmonizadas, letra simples, e percussão, com direito até a um solo de berimbau ao final da faixa.

O mesmo berimbau dá início a “Tereza Boca do Rio”, uma espécie de baião bem sóbrio, ao estilo d’A Barca. A bela faixa conta com simples e ótimos arranjos de voz, flauta, baixo, violões e percussão – além do já citado berimbau. Um momento bastante aconchegante e suave.

Emendada à canção anterior, “Mercado das Flores” mostra-se uma composição ainda melhor, repleta de variações rítmicas e instrumentais, ainda evidenciando a sonoridade brazuca, contendo, por exemplo, pitadas de samba – com direito à percussão caprichada – e musica mineira, numa amálgama muito coesa e de bom gosto. Destaque para os maravilhosos bandolins, que realmente fazem a diferença na faixa.

“Cavalo Marinho”, apesar de já ter sido lançada em “Corra o Risco”, supera tal versão devido à presença de duas vozes, em contraste com o vocal solitário de Olívia na primeira gravação. Os arranjos de violões são muito bem trabalhados, contendo um belo solo entre as partes cantadas. Outro motivo por que a versão de “Pirata” supera à de “Corra o Risco” é a menor repetição da letra.

A veia Prog do disco aparece pela primeira vez em “Jando”, mesclando arranjos abrasileirados a um Rock Progressivo extremamente competente e trabalhado. Os teclados são muito bem executados, assim como a bateria inquieta e quebrada. A banda foi muito feliz nessa mistura, criando, realmente, o “Prog à brasileira”, ao invés de simplesmente intercalar trechos de musica brasileira pura e, posteriormente, arranjos progressivos cheirando à Inglaterra.

Na seqüência, a emocionante “Jardim de Infância”, dispensando maiores detalhes devido a sua presença no já comentado álbum de estréia de Byington – apesar de aqui a canção parecer estar ainda mais deslumbrante.

Outro momento agradabilíssimo é “Desencontro” e sua bela melodia. Os arranjos discretos e requintados dão sabor emepebístico e jazzístico à obra.

A maravilhosa “Estrêla” merece grande destaque. Sua inspiradíssima melancolia agrada em cada mudança de acorde. Uma canção a ser bebida aos poucos, dotada daquela atmosfera intimista bem familiar aos fãs d’A Barca. A canção possui alguma coisa de Jazz, e um piano com dose extra de feeling. Muito bom!

Em contraste absoluto com qualquer outra composição da banda, “Manoel” já vem esculachando de cara, com seu sambinha tão malandro quanto o protagonista da canção. Muito divertida e descontraída, a faixa, apesar de ser um samba, contém uma bateria roqueira e solo de guitarra. O contrabaixo acústico também marca presença, assim como em diversas outras faixas do álbum.

“Rio Preto”, a exemplo de “Jando”, ostenta arranjos característicos do Progressivo mesclados à musica brasileira, sendo, porém, um pouco menos agressiva.

A instrumental “Canção Pra Ela” finaliza o disco de maneira comportada, não possuindo nenhuma característica muito marcante. Trata-se, contudo, de uma bela faixa.

E assim termina nossa saga musical, guiada por esse grupo de grande importância para a música nacional e de onde saíram renomados instrumentistas e compositores. Vale a pena comentar também a arte gráfica do disco, cujo autor é completamente desconhecido por mim. Trata-se, porém, de uma ilustração muito interessante, feita toda em escala de cinza, contendo um navio pirata, é claro, e diversos outros elementos condizentes à temática do álbum.

sábado, 28 de fevereiro de 2009

Olívia Byington - "Corra o Risco"


Nessa última terça-feira, enquanto o samba opulento ensaiava suas últimas passadas de carnaval, estava eu num ônibus voltando de um acampamento, com os fones atochados nos ouvidos. Ao ver, pela janela do veículo, árvores, nuvens e morros, imagens formavam-se em minha cabeça, fomentadas por aquela musicalidade incrível vinda do meu mp3 player. O som em questão era o maravilhoso “Corra o Risco”, primeiro álbum solo de Olívia Byington, maravilhosamente acompanhada pela Barca do Sol – é claro.

A cantora, desde cedo elogiada pelos críticos, já vinha trabalhando com Jaques Morelembaum no grupo “Antena Coletiva”. Então, evidentemente, ninguém melhor que ele e seus comparsas para conduzi-la nesse grande trabalho do riquíssimo e nem sempre reconhecido acervo brasileiro. O disco, lançado em 1978, além das incríveis faixas inéditas – algumas delas re-aproveitadas no último e excelente álbum da Barca, “Pirata”, do ano posterior – traz releituras de grandes composições d’A Barca do Sol, completamente revestidas de novos arranjos e, algumas vezes, até superando as versões originais.

“Fantasma da Ópera” abre muito bem o álbum, com arranjos absolutamente novos, bem mais carregados que em sua primeira versão. Apesar do glissando inconveniente de Olivia – fenômeno isolado da faixa, que fique bem claro – a canção ganha aqui uma roupagem interessantíssima, com percussão corporal e, no final, vocalizações quase indígenas, o grande destaque da música, em minha opinião. Tudo se mistura em uma grande festa sonora, aciganada, bem ao estilo d’A Barca. Extremamente empolgante.

Em contraste com a faixa anterior, “Lady Jane” é apresentada de maneira suave e lúdica, em que Olívia mostra com grande êxito seus dotes vocais, embalada pelo instrumental doce e límpido de sua fabulosa banda de apoio. É interessante notar o uso de teclados na obra, praticamente inexistentes nos dois primeiros discos d’A Barca. A banda executa também belíssimos vocais.

A primeira faixa inédita do disco, a própria “Corra o Risco” é uma grata surpresa aos fãs da banda. Olívia executa a maravilhosa melodia da canção, acompanhada unicamente pelo violoncelo, a que são acrescentados, gradualmente, os outros instrumentos. Cada estrofe recebe ornamentos diferenciados, criando uma atmosfera muito forte e sinistra. Vale citar mais uma vez a competência do grupo na feitura de climas maravilhosos, fazendo o ouvinte imaginar paisagens que servem de pano de fundo às canções. Destaque para o arranjo de flautas executado do 01:11 ao 01:32, lembrando um pouco o Genle Giant. Logo após, um belíssimo trecho, mais enérgico, é executado, um Folk de primeiríssima categoria.

“Jardim de Infância” configura-se em uma das mais belas canções que já ouvi em toda a minha vida. E quem me conhece sabe o quão difícil é me ouvir soltar máximas desse tipo. O trecho final sempre me toca muito, constituído de uma melodia erudita simplesmente deslumbrante. O canto lírico de Olívia torna-se um instrumento indispensável na composição, tanto que foi re-utilizado na versão do “Pirata”. Sublime.

Outro momento delicioso é “Banda dos Corações Solitários”, uma alusão ao mais importante álbum da mais importante banda de toda a história do Rock. Inédida, a faixa possui grande beleza melódica e arranjos suaves, muito pertinentes.

A próxima faixa, “Cavalo Marinho”, possui a melhor letra de todo o repertório da Barca do Sol. Uma poesia tão bela quanto curta, apenas quatro versos inspiradíssimos. Musicalmente, a canção não deixa nada a desejar, construída basicamente por dois violões dedilhados, acrescidos, posteriormente, a outros instrumentos, como flauta, violoncelo e órgão.

A sensacional “Lobo do Mar”, outro destaque absoluto na obra, possui grande riqueza de andamentos e temas variados, apresentando, em seu início, um quê de Genesis. O contraponto entre momentos tranquilos e agressivos é muito bem construído e coeso.

Arte. Essa é minha definição à finíssima “Água e Vinho”, dotada de uma tristeza gelada e grande requinte. A brilhante performance de Olívia, adicionada ao violoncelo, órgão, flauta e violão, fazem nossa alma realmente mergulhar na dramaticidade da canção. Belíssima letra.

Uma das releituras mais diferentes da original certamente é “Brilho da Noite”, que continua selvagem, mas de maneira completamente distinta. Ao contrário da versão contida no álbum homônimo d’A Barca do Sol, essencialmente acústica, em “Corra o Risco” a faixa abunda em sons elétricos de guitarra e violino destorcidos, teclados, e um baixo mal-crido - no bom sentido, éclaro. O resultado é muito bom, apesar do “CAAAARROOOO” da Olívia irritar um pouco.

Outra amostra do talento da vocalista e sua extensão vocal é “Minha Pena, Minha Dor”, acompanhada por um belo arranjo para piano.

A sensacional faixa “Luz do Tango” espanca com violência a cara do ouvinte – sutil, não? – encerrando esse disco fora do comum. A melodia vocal começa com guitarras abstratas, colorida, depois, pelos outros instrumentos que surgem aos poucos. A canção vai subindo de tom a cada estrofe, sofrendo mudanças – hora bruscas, hora sutis – de instrumentação e arranjos. O resultado é sensacional e extremamente poderoso, fluido, contendo aquela mágica que faz as cabeças balançarem – em desespero, no caso das mães.

Grandioso. “Corra o Risco” deveria, realmente, ser reconhecido como um clássico absoluto do Rock/MPB. Trata-se do último álbum em que Morelembaum trabalha com a Barca, sendo que, em “Pirata”, a banda já não conta mais com seu reverenciado violoncelista.

Enquanto eu puder desfrutar de música de tamanha qualidade, originalidade e sensibilidade, meus introspectivos carnavais estarão garantidos. E que passem, longamente e por muitas vezes, as árvores, nuvens e morros pelas janelas do ônibus.

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

A Barca do Sol - "Durante o Verão"


Aproveitando o embalo da resenha anterior, continuarei a escrever sobre este grande conjunto brasileiro que foi A Barca do Sol. Seguirei cronologicamente, tratando hoje de seu segundo e mais aclamado disco, “Durante o Verão”, lançado em 1976 pela gravadora Continental, e produzido por Egberto Gismonti. A banda, nesse trabalho, após uma mudança de formação, utilizou mais que nunca a guitarra elétrica, flertando um pouco mais com o Rock Progressivo inglês e produzindo um álbum finíssimo, digno de toda admiração a ele atribuída.

Ao som de gaivotas e ventania – mais litorâneo impossível – começa a faixa título, construída sobre a base tradicional das canções da Barca: flauta transversal, violões dedilhados, percussão e o violoncelo de Jacques. A diferença é que a faixa conta com um contrabaixo acústico, muito bem executado, por sinal.

“Hotel Colonial”, uma das grandes composições do álbum, é mais uma amostra da grande capacidade criativa da banda e sua facilidade em criar atmosferas sombrias e, digamos, “ameaçadoras”. A faixa tem início com um apito de navio, executado juntamente com o violoncelo, preparando a entrada para uma guitarra dedilhada e a melodia vocal. A faixa possui um belo trabalho vocal e instrumental, abundante em variações rítmicas e riqueza de texturas. Destaque para o riff executado após a menção do título na letra e para os arranjos de violões, guitarra e violoncelo.

Lenta e triste, “A Língua e a Bainha” vem como um bálsamo, envolvendo-nos com sua beleza melódica e harmônica. Trata-se de uma canção intimista, para se ouvir sozinho, saboreando cada nuance sonora.

“Os Pilares da Cultura”, a mais pesada do disco, caracteriza-se por guitarras destorcidas, bateria quebrada e uma letra muito interessante, um emaranhado de ditados, clichês, palavras de ordem e até frases publicitárias conhecidas no Brasil. Aqui, A Barca do Sol mostra sua face mais roqueira e se dá muito bem.

O disco segue com “Karen”, um retrato musical do cotidiano de uma mulher, cantarolando em sua casa, acompanhada pelos ruídos do rádio ligado, pássaros cantando, e um carro saindo da garagem. Ao cessar o canto da mulher, é a vez da banda executar a mesma melodia, utilizando apenas flauta e violão. A única faixa instrumental do LP.

Outro grande momento da obra, “Memorial Day” inicia-se com conversas e exclamações aleatórias – o ouvinte mais atento ouvirá, inclusive, um “Batman e Robin vem aí”. A canção é dotada de uma maravilhosa melodia, além de arranjos soberbos. A banda inclusive arrisca um cânone, lembrando o Gentle Giant, seguido de um trecho de Rock Progressivo classe A, com uma pegada bastante enérgica. Belíssima execução de todos os instrumentos.

A banda nos serve um verdadeiro “Banquete”, apetecendo e saciando a todo ouvinte ávido por um sabor proporcionado apenas por um disco de tamanho cacife. O violoncelo de Jacques, soberano, afirma definitivamente a faixa como uma das mais belas composições de todo o repertório do grupo.

“Belladona, Lady of the Rocks” possui um caráter meio latino, adicionando um tempero diferenciado ao disco. As guitarras destorcidas e percussão marcam presença mais uma vez.

O disco fecha com “Outros Carnavais”. Bem direta, a canção dispensa introdução, já começando com tudo. Aqui encontramos os ingredientes presentes na maioria das receitas da Barca, ou seja, instrumentação acústica e arranjos puxados para o Folk.

Como o caro leitor pode perceber, o segundo disco d’A Barca do Sol é um dos casos raros de 100% de aproveitamento, não possuindo uma só canção ruim. E o pior é que eu fui perceber o quão bom é o disco apenas essa semana! Vai entender...

domingo, 1 de fevereiro de 2009

A Barca do Sol - "A Barca do Sol"


“Quanto ao nosso som, dizer que fazemos rock puro seria o mesmo que ouvir cinco russos dando uma de Originais do Samba. Ou um bando de japoneses tocando baião. Nós, como eles, não teríamos swing”. Essa definição, dada pela própria Barca do Sol, traduz muito do universo e da visão musical desse tão peculiar grupo formado no Rio de Janeiro, em 1973. E, de fato, o que esses nove caras fizeram não caberia tão facilmente em um só rótulo.

O disco resenhado hoje é o álbum de estréia da banda, lançado em 1974, e é, em minha opinião, o mais original e experimental de todos eles. Aliás, nada aqui é convencional: melodias estranhas, instrumentação intrigante, letras enigmáticas, e uma criatividade fora do comum. Ao contrário da maioria das bandas nacionais da época, A Barca do Sol não se preocupava em imitar o som da gringalhada, optando por uma música que os fizeram únicos.

Não é à toa que o grupo chamou tanto a atenção de Egberto Gismonti, um dos grandes monstros da música brasileira que, além de produzir o disco, ainda fez pequenas participações, tocando sintetizador em duas das faixas. Outras presenças marcantes são a do violoncelista Jaques Morelembaum, membro da banda durante seus dois primeiros álbuns, e a do flautista bretão Richard Court, mais conhecido como Ritchie – sim, aquele mesmo Ritchie de “Menina Veneno”, por mais estranho que possa parecer!

O disco começa com “A Primeira Batalha” que, apesar de sua letra um tanto inconsistente e repetitiva, possui melodia e instrumentação impecáveis. A canção difere-se bastante do restante do repertório do grupo, dominado por letras introspectivas e melodias sombrias. Os violões, as flautas, o violoncelo e a percussão dão à faixa um tom descontraído e cigano, com uma sonoridade folk muito gostosa e natural.

A próxima faixa, “Brilho da Noite”, é um grande destaque não só do álbum, mas de todo o repertório da Barca. Trata-se de uma música extremamente dramática e teatral, dando a sensação de que se está no meio do mato com animais selvagens e outras criaturas noturnas à espreita. Letra e arranjos sensacionais, afirmando o som agreste da faixa.

“Arremesso”, apesar de uma bela canção, é um tanto monótona. De qualquer forma, vale sua vaga no disco, possuindo bons arranjos e trechos inspirados. Destaque para o violoncelo de Jaques. Ainda no mesmo clima melancólico e intimista, segue-se “As Boas Consciências”, possuindo, também, delicados arranjos, todos de muito bom gosto.

Um tanto mais estranha que as duas canções anteriores, “Caminhão” apresenta uma sonoridade bastante tribal, com os arranjos caóticos e ousados, tão presentes na obra.

Ótima melodia e letra bem interessante são as principais características de “Lady Jane”, que emenda-se com “Dragão da Bondade”, outra faixa muito agradável. Apesar de momentos doces, a faixa possui uma instrumentação mais pesada em seu refrão, marcada pela flauta inquieta, violões batidos e o violoncelo marcante de Morelembaum. Seu único ponto negativo é um violinozinho indigesto, no finalzinho da faixa. Mas nada que a comprometa...

“Alaska” é outro destaque do disco. Sua melodia nada convencional e sua letra ainda mais peculiar chamam muito a atenção, e agradarão a qualquer ouvinte à procura de algo diferente. A faixa possui mudanças de tom e de ritmo, contribuindo ainda mais para sua riqueza e distinção.

O álbum segue com outro grande momento, “Fantasma da Ópera”. Já está ficando chato, mas eu tenho a obrigação de repetir mais uma vez que a banda foi extremamente feliz em seus arranjos, melodias e letra. A faixa tem início com uma vocalização muito interessante, lembrando grandes grupos brasileiros como, por exemplo, o MPB4.

“Corsário Satã”, a mais agressiva do disco, faz o ouvinte sentir-se, realmente, em um navio pirata. Trata-se de uma das grandes composições da carreira do grupo, extremamente imaginativa e expressiva. O melhor é que nem é preciso de um mapa do tesouro para se ter acesso a essa preciosidade.

A Barca do Sol chega finalmente ao porto com a faixa título, muito bela e delicada. É hora dos tripulantes descerem ao solo, já com certa nostalgia, para relembrarem os grandes momentos dessa viagem.

Resumo da ópera: eu não sei se posso chamar “A Barca do Sol” de um disco de Rock; também não sei se devo chamá-lo de um álbum de MPB, ou seja lá o que diabos for. Só posso afirmar uma coisa: trata-se de ótima música. E é só isso o que interessa.

sábado, 17 de janeiro de 2009

John Lee Hooker - "Chill Out"


Sob o sol escaldante no céu, às batidas de milhares de arados no solo, nos campos de algodão e tabaco regados pelo suor dos escravos norte-americanos, podia-se ouvir um clamor, um grito de angústia. Vindo de cada boca negra, e resultado de desumana opressão, um canto triste e sem perspectivas ecoava; canto este que os fazia lembrar de sua mãe África, de sua terra deixada há muitos anos, há muitas milhas de água salgada.

Tal canto, ao longo dos anos, sofreu mudanças e adaptações, gerando um estilo de crucial importância à musicalidade ocidental do séc. XX até os dias atuais: o Blues.

Às margens do rio Mississipi surgiram os primeiros grandes nomes do gênero; logo em seguida, o Blues atingiu Chicago, influenciando, na década de 40, os pioneiros do Rock americano, e sendo, na década de 60, resgatado pelas grandes bandas britânicas, como os Stones e os Beatles.

Entre os principais nomes do estilo, como os veteranos Robert Johnson, Muddy Waters e BB King, está o artista de cujo disco falarei na resenha de hoje: John Lee Hooker. O álbum em questão é “Chill Out”, lançado já na década de 90 – mais precisamente em 1995 – quando o artista já possuía longos anos de carreira e experiência, gozando de enorme respeito por parte dos entusiastas da música negra norte-americana.

Apesar de não tratar-se de um registro antigo, “Chill Out” conserva o verdadeiro espírito do Blues, tendo em cada nota batida em seu violão as cicatrizes e a melancolia características do estilo. Por mais que, na maioria das vezes, as letras não serem pessimistas – fato nada anormal ao estilo que, afinal de contas, não é feito só de amarguras – há predominância de uma sonoridade bastante taciturna e até mesmo monótona, o que, em minha opinião, é um ponto pra lá de positivo.

O disco tem inicio com “Chill Out (Things Gonna Change)”, contando com a guitarra caliente de Santana. A faixa possui uma sonoridade impar no trabalho, com a forte veia latina trazida pelo guitarrista convidado. Os instrumentos de percussão adicionam ainda mais ênfase a esse tempero. Com todo o respeito a Santana e sua importância para a musica em âmbito mundial, esta talvez seja a faixa que menos me agrada em todo o disco, sendo sua faixa mais comercial.

Para mim a diversão começa realmente com a segunda faixa, “Deep Blue Sea” – se é que a faixa possui algo de divertido… Trata-se daquele Bluesão bem a la Hooker, escrita e executada pelo músico. São só John, seu violão de cordas de aço e seu pé, batendo o ritmo, solitário, insistente, no piso do estúdio, proporcionando ao ouvinte um momento bem intimista, como se estivéssemos sentados em um quarto de um casebre em Nova Orleans, observando a chuva pela janela e ouvindo os acordes martelados no violão.

O álbum tem continuidade com “Kiddio” e sua levada gostosa e um tanto mais alegre. A faixa possui bem mais instrumentação que a anterior, contando com um pianinho arisco, executado brilhantemente por Charles Brown; guitarra discreta; um baixo ainda mais discreto; e aquela bateria malandra, ali, como se não quisesse nada com nada.

Outro momento intenso é o medley “Serves Me Right to Suffer/Syndicator”, levando qualquer fã do bom e velho Slow Blues às alturas. A faixa conta com a participação especialíssima de Van Morrison nos vocais e guitarra, demonstrando grande feeling em cada nota executada. O órgão de Booker T. Jones também marca presença, dando à faixa o acabamento merecido.

“One Bourbon, One Scotch, One Beer” trata de um assunto bem decorrente no Blues: a manguaça. Haja fígado! A faixa é um Blues pra cima, bem descontraído – não me chamando muita atenção, pra ser sincero. O ouvinte mais atento perceberá que John Lee, até aquí, não executou dois tipos iguais de Blues, fazendo um passeio por várias variáveis do estilo.

Apartir de agora, a fossa reina soberana no trabalho – ao menos no que diz respeito à musicalidade. “Tupelo”, lembrando a segunda faixa do disco, conta apenas com Hooker, repetindo um riff melancólico em seu violão.

O mesmo clima de profunda melancolia está presente em “Woman On My Mind”. O ouvinte não familiarizado com essa sonoridade, ou se a musica monótona não for mesmo do gosto do freguês, achará tudo isso um porre, abrindo o aparelho de som e enterrando o disco em uma caixa a sete palmos abaixo da terra. Bom, sempre há de haver um camarada que, assim como eu, fechará os olhos e sentirá toda a emoção transmitida pelo músico.

“Annie Mae”, ainda de um fel absoluto, possui acompanhamento de uma bateria lenta, piano expressivo e os solussos rápidos e grosseiros da guitarra característica de John Lee Hooker. Mais uma vez Charlie Brown dá um show à parte no piano. É interessante observar a constante repetição de palavras de John, uma de suas marcas registradas – especialmente quando se trata da palavra “you”.

A próxima faixa, “Too Young”, é um tanto estranha e bastante sentida. Aquí o disco chega ao auge da monotonia, sendo um pouco parada demais até mesmo para mim.
“Talkin’ The Blues” e “If You Never Been in Love” apresentam a mesma forma de Blues, com John se lamentando ao violão.

Confesso que após três músicas seguidas com esse rítmo de lesma o álbum fica um pouco cansativo, mas a última faixa vem salvar o dia: “We’ll Meet Again”, um Slow Blues muito gostoso, fechando o disco com chave de ouro. Bruce Kaphan faz um belo trabalho guitarrístico, diferenciando-se totalmente do estilo de Hooker.

Para a maioria dos ouvintes, o álbum pode ser adjetivado com uma só palavra: chato. Mas para quem quer passar a madrugada sozinho, deitado no quarto, feeling the Blues ao som da chuva, a satisfação é garantida. Bom, não sei se garantida, mas pra mim funciona bem…

sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

Genesis - "Trespass"


Imagine um mundo frio e belo, estático, sombrio, ladeado de montanhas brancas, vistas de uma janela de um palácio azul em que um rei e sua rainha observam a graça de uma paisagem bucólica e deserta. A chave para esse palácio imponente e pálido está nas mãos de uma das grandes bandas surgidas no finalzinho dos anos 60: o Genesis.

Após o lançamento do ignorado “From Genesis to Revelation” em 1969, a banda retornou de cabeça erguida com “Trespass”, entrando de uma vez por todas para a realeza do Rock Progressivo. O disco, ainda não contando com a presença de Phil Collins nem mesmo na bateria, já possui as fortes características que tornariam a banda uma das mais veneradas do gênero. É notável a maturidade do disco, lançado ainda no ano de 1970, quando a maioria das grandes bandas progressivas ainda engatinhavam. Talvez apenas o King Crimson, um dos pioneiros absolutos do estilo, gozava de tamanha naturalidade na produção do Prog naquele ano ainda embrionário.

A capa, criação de Paul Whitehead, pinta o disco com um azul triste, reforçando sua musicalidade vespertina e crepuscular. Trata-se de uma obra a ser apreciada de maneira solitária, no silencio, para se poder absorver cada segundo de tamanha nobreza sonora. “Trespass” possui momentos de tirar o fôlego, tocando o intimo do bem-aventurado ouvinte. É interessante notar na capa, já descrita no primeiro parágrafo, uma referencia visual para cada faixa do álbum, como, por exemplo, um anjinho “semi-barroco” para “Visions of Angels” e uma grande faca para “The Knife”.

“Looking for Someone” começa com a voz expressiva do grande líder do grupo, Peter Gabriel, com sua grande facilidade em criar atmosferas imaginativas e letras teatrais – teatralidade esta que se tornou marca registrada da banda, fazendo com que as performances do vocalista no palco se tornassem um espetáculo aparte. A faixa é abundante em belas melodias e arranjos espetaculares. Nobres, como já disse antes. Outra característica da canção é a alternância entre trechos delicados e outros mais agressivos.

O disco continua com a melancólica “White Mountain”, possuindo algumas passagens maravilhosas que se repetem após cada parte mais enérgica. Tais trechos, apesar de inseridos na canção que considero a menos interessante do trabalho, são alguns dos momentos mais belos e intimistas da obra, passando sensações de leveza e candura absolutamente aconchegantes.

Outro belo momento do disco é “Vision of Angels”, apresentando a melancolia presente em toda a obra, além dos belos arranjos e inspiradas melodias. Talvez seja essa a faixa em que o baterista John Mayhew tenha mais destaque, com suas poderosas e empolgadas viradas, dando ainda mais força aos acordes executados pela banda.

É no lado B, porém, em que se encontram as mais belas composições do disco. A primeira delas, “Stagnation”, e uma das obras-primas absolutas de toda a carreira do Genesis, em minha opinião. É uma daquelas canções que nos elevam a um estado de êxtase profundo, abundante em momentos impressionantemente belos. Faltam-me palavras para descrever esta que é a grande atração do álbum. O sintetizador de Anthony Banks nos leva à loucura, assim como os violões dedilhados de Banks, Philips e Rutherford. Fora do comum.

A segunda, “Dusk”, é sublime. A faixa mais simples do álbum possui um poder de acalanto absoluto. É como ter uma visão antecipada do paraíso. Devido à incompetência das palavras ao tentar descrever tal beleza, caminharei para a faixa final.

“The Knife” apresenta agressividade inédita no trabalho, possuindo, mesmo que de maneira violenta, a elegância tão característica do álbum. A música soa como uma revolução, um atentado ao quieto palácio em tal país imune ao tempo. A faixa possui também momentos mais calmos em que a flauta de Gabriel dá o ar de sua graça. Um grito infantil de desespero em meio a outras vozes inquietas é sinistro, aumentando a voracidade sonora da peça.

“Trespass” mostra-se um trabalho austero, merecendo atenção absoluta por parte do ouvinte. Trata-se de uma daquelas raras oportunidades de ser um membro da realeza, mesmo que por apenas um pouco mais de 40 minutos.
Desculpem pela demora, caros blognautas. O velho João saiu de férias, mas já está de volta. Atualizarei o blog o mais depressa possível.
Até mais!