Nessa última terça-feira, enquanto o samba opulento ensaiava suas últimas passadas de carnaval, estava eu num ônibus voltando de um acampamento, com os fones atochados nos ouvidos. Ao ver, pela janela do veículo, árvores, nuvens e morros, imagens formavam-se em minha cabeça, fomentadas por aquela musicalidade incrível vinda do meu mp3 player. O som em questão era o maravilhoso “Corra o Risco”, primeiro álbum solo de Olívia Byington, maravilhosamente acompanhada pela Barca do Sol – é claro.
A cantora, desde cedo elogiada pelos críticos, já vinha trabalhando com Jaques Morelembaum no grupo “Antena Coletiva”. Então, evidentemente, ninguém melhor que ele e seus comparsas para conduzi-la nesse grande trabalho do riquíssimo e nem sempre reconhecido acervo brasileiro. O disco, lançado em 1978, além das incríveis faixas inéditas – algumas delas re-aproveitadas no último e excelente álbum da Barca, “Pirata”, do ano posterior – traz releituras de grandes composições d’A Barca do Sol, completamente revestidas de novos arranjos e, algumas vezes, até superando as versões originais.
“Fantasma da Ópera” abre muito bem o álbum, com arranjos absolutamente novos, bem mais carregados que em sua primeira versão. Apesar do glissando inconveniente de Olivia – fenômeno isolado da faixa, que fique bem claro – a canção ganha aqui uma roupagem interessantíssima, com percussão corporal e, no final, vocalizações quase indígenas, o grande destaque da música, em minha opinião. Tudo se mistura em uma grande festa sonora, aciganada, bem ao estilo d’A Barca. Extremamente empolgante.
Em contraste com a faixa anterior, “Lady Jane” é apresentada de maneira suave e lúdica, em que Olívia mostra com grande êxito seus dotes vocais, embalada pelo instrumental doce e límpido de sua fabulosa banda de apoio. É interessante notar o uso de teclados na obra, praticamente inexistentes nos dois primeiros discos d’A Barca. A banda executa também belíssimos vocais.
A primeira faixa inédita do disco, a própria “Corra o Risco” é uma grata surpresa aos fãs da banda. Olívia executa a maravilhosa melodia da canção, acompanhada unicamente pelo violoncelo, a que são acrescentados, gradualmente, os outros instrumentos. Cada estrofe recebe ornamentos diferenciados, criando uma atmosfera muito forte e sinistra. Vale citar mais uma vez a competência do grupo na feitura de climas maravilhosos, fazendo o ouvinte imaginar paisagens que servem de pano de fundo às canções. Destaque para o arranjo de flautas executado do 01:11 ao 01:32, lembrando um pouco o Genle Giant. Logo após, um belíssimo trecho, mais enérgico, é executado, um Folk de primeiríssima categoria.
“Jardim de Infância” configura-se em uma das mais belas canções que já ouvi em toda a minha vida. E quem me conhece sabe o quão difícil é me ouvir soltar máximas desse tipo. O trecho final sempre me toca muito, constituído de uma melodia erudita simplesmente deslumbrante. O canto lírico de Olívia torna-se um instrumento indispensável na composição, tanto que foi re-utilizado na versão do “Pirata”. Sublime.
Outro momento delicioso é “Banda dos Corações Solitários”, uma alusão ao mais importante álbum da mais importante banda de toda a história do Rock. Inédida, a faixa possui grande beleza melódica e arranjos suaves, muito pertinentes.
A próxima faixa, “Cavalo Marinho”, possui a melhor letra de todo o repertório da Barca do Sol. Uma poesia tão bela quanto curta, apenas quatro versos inspiradíssimos. Musicalmente, a canção não deixa nada a desejar, construída basicamente por dois violões dedilhados, acrescidos, posteriormente, a outros instrumentos, como flauta, violoncelo e órgão.
A sensacional “Lobo do Mar”, outro destaque absoluto na obra, possui grande riqueza de andamentos e temas variados, apresentando, em seu início, um quê de Genesis. O contraponto entre momentos tranquilos e agressivos é muito bem construído e coeso.
Arte. Essa é minha definição à finíssima “Água e Vinho”, dotada de uma tristeza gelada e grande requinte. A brilhante performance de Olívia, adicionada ao violoncelo, órgão, flauta e violão, fazem nossa alma realmente mergulhar na dramaticidade da canção. Belíssima letra.
Uma das releituras mais diferentes da original certamente é “Brilho da Noite”, que continua selvagem, mas de maneira completamente distinta. Ao contrário da versão contida no álbum homônimo d’A Barca do Sol, essencialmente acústica, em “Corra o Risco” a faixa abunda em sons elétricos de guitarra e violino destorcidos, teclados, e um baixo mal-crido - no bom sentido, éclaro. O resultado é muito bom, apesar do “CAAAARROOOO” da Olívia irritar um pouco.
Outra amostra do talento da vocalista e sua extensão vocal é “Minha Pena, Minha Dor”, acompanhada por um belo arranjo para piano.
A sensacional faixa “Luz do Tango” espanca com violência a cara do ouvinte – sutil, não? – encerrando esse disco fora do comum. A melodia vocal começa com guitarras abstratas, colorida, depois, pelos outros instrumentos que surgem aos poucos. A canção vai subindo de tom a cada estrofe, sofrendo mudanças – hora bruscas, hora sutis – de instrumentação e arranjos. O resultado é sensacional e extremamente poderoso, fluido, contendo aquela mágica que faz as cabeças balançarem – em desespero, no caso das mães.
Grandioso. “Corra o Risco” deveria, realmente, ser reconhecido como um clássico absoluto do Rock/MPB. Trata-se do último álbum em que Morelembaum trabalha com a Barca, sendo que, em “Pirata”, a banda já não conta mais com seu reverenciado violoncelista.
Enquanto eu puder desfrutar de música de tamanha qualidade, originalidade e sensibilidade, meus introspectivos carnavais estarão garantidos. E que passem, longamente e por muitas vezes, as árvores, nuvens e morros pelas janelas do ônibus.