sábado, 28 de fevereiro de 2009

Olívia Byington - "Corra o Risco"


Nessa última terça-feira, enquanto o samba opulento ensaiava suas últimas passadas de carnaval, estava eu num ônibus voltando de um acampamento, com os fones atochados nos ouvidos. Ao ver, pela janela do veículo, árvores, nuvens e morros, imagens formavam-se em minha cabeça, fomentadas por aquela musicalidade incrível vinda do meu mp3 player. O som em questão era o maravilhoso “Corra o Risco”, primeiro álbum solo de Olívia Byington, maravilhosamente acompanhada pela Barca do Sol – é claro.

A cantora, desde cedo elogiada pelos críticos, já vinha trabalhando com Jaques Morelembaum no grupo “Antena Coletiva”. Então, evidentemente, ninguém melhor que ele e seus comparsas para conduzi-la nesse grande trabalho do riquíssimo e nem sempre reconhecido acervo brasileiro. O disco, lançado em 1978, além das incríveis faixas inéditas – algumas delas re-aproveitadas no último e excelente álbum da Barca, “Pirata”, do ano posterior – traz releituras de grandes composições d’A Barca do Sol, completamente revestidas de novos arranjos e, algumas vezes, até superando as versões originais.

“Fantasma da Ópera” abre muito bem o álbum, com arranjos absolutamente novos, bem mais carregados que em sua primeira versão. Apesar do glissando inconveniente de Olivia – fenômeno isolado da faixa, que fique bem claro – a canção ganha aqui uma roupagem interessantíssima, com percussão corporal e, no final, vocalizações quase indígenas, o grande destaque da música, em minha opinião. Tudo se mistura em uma grande festa sonora, aciganada, bem ao estilo d’A Barca. Extremamente empolgante.

Em contraste com a faixa anterior, “Lady Jane” é apresentada de maneira suave e lúdica, em que Olívia mostra com grande êxito seus dotes vocais, embalada pelo instrumental doce e límpido de sua fabulosa banda de apoio. É interessante notar o uso de teclados na obra, praticamente inexistentes nos dois primeiros discos d’A Barca. A banda executa também belíssimos vocais.

A primeira faixa inédita do disco, a própria “Corra o Risco” é uma grata surpresa aos fãs da banda. Olívia executa a maravilhosa melodia da canção, acompanhada unicamente pelo violoncelo, a que são acrescentados, gradualmente, os outros instrumentos. Cada estrofe recebe ornamentos diferenciados, criando uma atmosfera muito forte e sinistra. Vale citar mais uma vez a competência do grupo na feitura de climas maravilhosos, fazendo o ouvinte imaginar paisagens que servem de pano de fundo às canções. Destaque para o arranjo de flautas executado do 01:11 ao 01:32, lembrando um pouco o Genle Giant. Logo após, um belíssimo trecho, mais enérgico, é executado, um Folk de primeiríssima categoria.

“Jardim de Infância” configura-se em uma das mais belas canções que já ouvi em toda a minha vida. E quem me conhece sabe o quão difícil é me ouvir soltar máximas desse tipo. O trecho final sempre me toca muito, constituído de uma melodia erudita simplesmente deslumbrante. O canto lírico de Olívia torna-se um instrumento indispensável na composição, tanto que foi re-utilizado na versão do “Pirata”. Sublime.

Outro momento delicioso é “Banda dos Corações Solitários”, uma alusão ao mais importante álbum da mais importante banda de toda a história do Rock. Inédida, a faixa possui grande beleza melódica e arranjos suaves, muito pertinentes.

A próxima faixa, “Cavalo Marinho”, possui a melhor letra de todo o repertório da Barca do Sol. Uma poesia tão bela quanto curta, apenas quatro versos inspiradíssimos. Musicalmente, a canção não deixa nada a desejar, construída basicamente por dois violões dedilhados, acrescidos, posteriormente, a outros instrumentos, como flauta, violoncelo e órgão.

A sensacional “Lobo do Mar”, outro destaque absoluto na obra, possui grande riqueza de andamentos e temas variados, apresentando, em seu início, um quê de Genesis. O contraponto entre momentos tranquilos e agressivos é muito bem construído e coeso.

Arte. Essa é minha definição à finíssima “Água e Vinho”, dotada de uma tristeza gelada e grande requinte. A brilhante performance de Olívia, adicionada ao violoncelo, órgão, flauta e violão, fazem nossa alma realmente mergulhar na dramaticidade da canção. Belíssima letra.

Uma das releituras mais diferentes da original certamente é “Brilho da Noite”, que continua selvagem, mas de maneira completamente distinta. Ao contrário da versão contida no álbum homônimo d’A Barca do Sol, essencialmente acústica, em “Corra o Risco” a faixa abunda em sons elétricos de guitarra e violino destorcidos, teclados, e um baixo mal-crido - no bom sentido, éclaro. O resultado é muito bom, apesar do “CAAAARROOOO” da Olívia irritar um pouco.

Outra amostra do talento da vocalista e sua extensão vocal é “Minha Pena, Minha Dor”, acompanhada por um belo arranjo para piano.

A sensacional faixa “Luz do Tango” espanca com violência a cara do ouvinte – sutil, não? – encerrando esse disco fora do comum. A melodia vocal começa com guitarras abstratas, colorida, depois, pelos outros instrumentos que surgem aos poucos. A canção vai subindo de tom a cada estrofe, sofrendo mudanças – hora bruscas, hora sutis – de instrumentação e arranjos. O resultado é sensacional e extremamente poderoso, fluido, contendo aquela mágica que faz as cabeças balançarem – em desespero, no caso das mães.

Grandioso. “Corra o Risco” deveria, realmente, ser reconhecido como um clássico absoluto do Rock/MPB. Trata-se do último álbum em que Morelembaum trabalha com a Barca, sendo que, em “Pirata”, a banda já não conta mais com seu reverenciado violoncelista.

Enquanto eu puder desfrutar de música de tamanha qualidade, originalidade e sensibilidade, meus introspectivos carnavais estarão garantidos. E que passem, longamente e por muitas vezes, as árvores, nuvens e morros pelas janelas do ônibus.

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

A Barca do Sol - "Durante o Verão"


Aproveitando o embalo da resenha anterior, continuarei a escrever sobre este grande conjunto brasileiro que foi A Barca do Sol. Seguirei cronologicamente, tratando hoje de seu segundo e mais aclamado disco, “Durante o Verão”, lançado em 1976 pela gravadora Continental, e produzido por Egberto Gismonti. A banda, nesse trabalho, após uma mudança de formação, utilizou mais que nunca a guitarra elétrica, flertando um pouco mais com o Rock Progressivo inglês e produzindo um álbum finíssimo, digno de toda admiração a ele atribuída.

Ao som de gaivotas e ventania – mais litorâneo impossível – começa a faixa título, construída sobre a base tradicional das canções da Barca: flauta transversal, violões dedilhados, percussão e o violoncelo de Jacques. A diferença é que a faixa conta com um contrabaixo acústico, muito bem executado, por sinal.

“Hotel Colonial”, uma das grandes composições do álbum, é mais uma amostra da grande capacidade criativa da banda e sua facilidade em criar atmosferas sombrias e, digamos, “ameaçadoras”. A faixa tem início com um apito de navio, executado juntamente com o violoncelo, preparando a entrada para uma guitarra dedilhada e a melodia vocal. A faixa possui um belo trabalho vocal e instrumental, abundante em variações rítmicas e riqueza de texturas. Destaque para o riff executado após a menção do título na letra e para os arranjos de violões, guitarra e violoncelo.

Lenta e triste, “A Língua e a Bainha” vem como um bálsamo, envolvendo-nos com sua beleza melódica e harmônica. Trata-se de uma canção intimista, para se ouvir sozinho, saboreando cada nuance sonora.

“Os Pilares da Cultura”, a mais pesada do disco, caracteriza-se por guitarras destorcidas, bateria quebrada e uma letra muito interessante, um emaranhado de ditados, clichês, palavras de ordem e até frases publicitárias conhecidas no Brasil. Aqui, A Barca do Sol mostra sua face mais roqueira e se dá muito bem.

O disco segue com “Karen”, um retrato musical do cotidiano de uma mulher, cantarolando em sua casa, acompanhada pelos ruídos do rádio ligado, pássaros cantando, e um carro saindo da garagem. Ao cessar o canto da mulher, é a vez da banda executar a mesma melodia, utilizando apenas flauta e violão. A única faixa instrumental do LP.

Outro grande momento da obra, “Memorial Day” inicia-se com conversas e exclamações aleatórias – o ouvinte mais atento ouvirá, inclusive, um “Batman e Robin vem aí”. A canção é dotada de uma maravilhosa melodia, além de arranjos soberbos. A banda inclusive arrisca um cânone, lembrando o Gentle Giant, seguido de um trecho de Rock Progressivo classe A, com uma pegada bastante enérgica. Belíssima execução de todos os instrumentos.

A banda nos serve um verdadeiro “Banquete”, apetecendo e saciando a todo ouvinte ávido por um sabor proporcionado apenas por um disco de tamanho cacife. O violoncelo de Jacques, soberano, afirma definitivamente a faixa como uma das mais belas composições de todo o repertório do grupo.

“Belladona, Lady of the Rocks” possui um caráter meio latino, adicionando um tempero diferenciado ao disco. As guitarras destorcidas e percussão marcam presença mais uma vez.

O disco fecha com “Outros Carnavais”. Bem direta, a canção dispensa introdução, já começando com tudo. Aqui encontramos os ingredientes presentes na maioria das receitas da Barca, ou seja, instrumentação acústica e arranjos puxados para o Folk.

Como o caro leitor pode perceber, o segundo disco d’A Barca do Sol é um dos casos raros de 100% de aproveitamento, não possuindo uma só canção ruim. E o pior é que eu fui perceber o quão bom é o disco apenas essa semana! Vai entender...

domingo, 1 de fevereiro de 2009

A Barca do Sol - "A Barca do Sol"


“Quanto ao nosso som, dizer que fazemos rock puro seria o mesmo que ouvir cinco russos dando uma de Originais do Samba. Ou um bando de japoneses tocando baião. Nós, como eles, não teríamos swing”. Essa definição, dada pela própria Barca do Sol, traduz muito do universo e da visão musical desse tão peculiar grupo formado no Rio de Janeiro, em 1973. E, de fato, o que esses nove caras fizeram não caberia tão facilmente em um só rótulo.

O disco resenhado hoje é o álbum de estréia da banda, lançado em 1974, e é, em minha opinião, o mais original e experimental de todos eles. Aliás, nada aqui é convencional: melodias estranhas, instrumentação intrigante, letras enigmáticas, e uma criatividade fora do comum. Ao contrário da maioria das bandas nacionais da época, A Barca do Sol não se preocupava em imitar o som da gringalhada, optando por uma música que os fizeram únicos.

Não é à toa que o grupo chamou tanto a atenção de Egberto Gismonti, um dos grandes monstros da música brasileira que, além de produzir o disco, ainda fez pequenas participações, tocando sintetizador em duas das faixas. Outras presenças marcantes são a do violoncelista Jaques Morelembaum, membro da banda durante seus dois primeiros álbuns, e a do flautista bretão Richard Court, mais conhecido como Ritchie – sim, aquele mesmo Ritchie de “Menina Veneno”, por mais estranho que possa parecer!

O disco começa com “A Primeira Batalha” que, apesar de sua letra um tanto inconsistente e repetitiva, possui melodia e instrumentação impecáveis. A canção difere-se bastante do restante do repertório do grupo, dominado por letras introspectivas e melodias sombrias. Os violões, as flautas, o violoncelo e a percussão dão à faixa um tom descontraído e cigano, com uma sonoridade folk muito gostosa e natural.

A próxima faixa, “Brilho da Noite”, é um grande destaque não só do álbum, mas de todo o repertório da Barca. Trata-se de uma música extremamente dramática e teatral, dando a sensação de que se está no meio do mato com animais selvagens e outras criaturas noturnas à espreita. Letra e arranjos sensacionais, afirmando o som agreste da faixa.

“Arremesso”, apesar de uma bela canção, é um tanto monótona. De qualquer forma, vale sua vaga no disco, possuindo bons arranjos e trechos inspirados. Destaque para o violoncelo de Jaques. Ainda no mesmo clima melancólico e intimista, segue-se “As Boas Consciências”, possuindo, também, delicados arranjos, todos de muito bom gosto.

Um tanto mais estranha que as duas canções anteriores, “Caminhão” apresenta uma sonoridade bastante tribal, com os arranjos caóticos e ousados, tão presentes na obra.

Ótima melodia e letra bem interessante são as principais características de “Lady Jane”, que emenda-se com “Dragão da Bondade”, outra faixa muito agradável. Apesar de momentos doces, a faixa possui uma instrumentação mais pesada em seu refrão, marcada pela flauta inquieta, violões batidos e o violoncelo marcante de Morelembaum. Seu único ponto negativo é um violinozinho indigesto, no finalzinho da faixa. Mas nada que a comprometa...

“Alaska” é outro destaque do disco. Sua melodia nada convencional e sua letra ainda mais peculiar chamam muito a atenção, e agradarão a qualquer ouvinte à procura de algo diferente. A faixa possui mudanças de tom e de ritmo, contribuindo ainda mais para sua riqueza e distinção.

O álbum segue com outro grande momento, “Fantasma da Ópera”. Já está ficando chato, mas eu tenho a obrigação de repetir mais uma vez que a banda foi extremamente feliz em seus arranjos, melodias e letra. A faixa tem início com uma vocalização muito interessante, lembrando grandes grupos brasileiros como, por exemplo, o MPB4.

“Corsário Satã”, a mais agressiva do disco, faz o ouvinte sentir-se, realmente, em um navio pirata. Trata-se de uma das grandes composições da carreira do grupo, extremamente imaginativa e expressiva. O melhor é que nem é preciso de um mapa do tesouro para se ter acesso a essa preciosidade.

A Barca do Sol chega finalmente ao porto com a faixa título, muito bela e delicada. É hora dos tripulantes descerem ao solo, já com certa nostalgia, para relembrarem os grandes momentos dessa viagem.

Resumo da ópera: eu não sei se posso chamar “A Barca do Sol” de um disco de Rock; também não sei se devo chamá-lo de um álbum de MPB, ou seja lá o que diabos for. Só posso afirmar uma coisa: trata-se de ótima música. E é só isso o que interessa.